Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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As manhas de Faustinho

Os bobos

Conta o Leitor

2015-07-21 às 06h00

Escritor Escritor

Domingos Xavier

No Domingo antes do Domingo de Ramos de 1970, o povo saiu da missa e dirigiu-se em peso à sede da Junta, mesmo ali ao lado da Igreja nova. Minutos antes, o Padre Acácio lera circunspecto e com voz cansada: - “Este, anúncio, é, para, todos, os paroquianos, que, completaram, 18 anos”.
Gabiru sentiu o irmão Faustinho estremecer na certeza do que o esperava. E o Padre reiterou, agora com o ritmo mais acentuado: - “Este anúncio, Nosso Senhor me permita, é para os nossos queridos rapazes que se devem preparar, para servir a Pátria”.

Visto isso, o Presidente da Junta havia colocado um papel azul de 25 linhas meio ensebado com uns cinco ou seis nomes de futuros mancebos. O irmão de Gabiru ia ser chamado à inspeção, à tropa. No caminho de volta a casa, Faustinho foi-se lembrando da figura do Neves, enfermeiro, farmacêutico, capelão, parteiro, veterinário, endireita e até se falava que tinha pacto com o demónio.

Sem perda de tempo, Adelino Ferraz, Pai do nosso Gabiru, eterno Presidente da Banda Musical, convocou o Neves, que depois de inteirado do caso, inquiriu:
- Ouve lá, ó homem?... Mas tu não tens aí uma maleita prá gente se agarrar?…
Aproveitando o jeito acanhado de Faustinho, o Pai Adelino pensou, repensou e o melhor que achou foi o seguinte:
- Ó Nebes, e se a gente fizesse um abaixo-assinado lá na banda, a dizer que o moço... faz faurta... Enfim, bem sabes que é o único clarinete que temos?.
- Qual quê, tás maluco!... Mas tu achas que a Tropa bai nessa? Lebam-te mas é o catraio para tocar a corneta da parada.

Já te disse, o mais seguro era mesmo aí uma doençazita... Oube lá, ó Faustinho, de que te queixas tu?”. O jovem ia a responder, mas novamente o Pai Adelino atalhou:
- “Rilha bem, este caraças. Não tem a bicha solitária, nem o pé chato... o que tá é cheiínho de minhocas naquela cabeça. E uma delas rabeia que se farta para não ir à Tropa. Por mim, ia lá batê-las... Desde que não bá prá Guiné, que aquilo lá é ruim. Ouço dizer que caem lá como tordos!...”.

- Já estebe pior, ó Lino... - atalhava o intermediário, que além de todas as profissões era também um hábil regatão de gado.
- Bem, mas agora o que interessa é ber como libramos este gajo! Bou estudar o assunto...E tu bai preparando aí uns dez contitos... Num é pra mim, sabes, mas tenho de untar aí as molas ao sargento. E, já agora, bê se me arranjas aí uns atestados. Temos de dar este moço como inapto.
E agora colocando a mão no ombro de Faustino, instruiu: - Entretanto, aqui o jovem bai ensaiar umas gritarias, uns gemidos e..., mais umas coisas que eu hei-de indicar como se faz.

-Amigo Nebes, além da paga é favor. O rapaz faz-me faurta lá no instrumento..., e a mãe é a única ajuda que tem para o quintal, depois dos estudos. Se não tibesse perdido dous anos, até podia adiar. Mas num pense que se bai tornar um gandulo: se num for mais nada, tem lugar garantido na sarração do compadre Bitorino.

O Mendes era de média estatura, mas de grande corpanzil e curtia uma bigodaça de respeito. O cabelo esbranquiçado, as suíças compridas e o bigode revirado eram o seu costumado visual.
Apesar de muitas façanhas, da sua fama de livrador, o Neves era um patriota acrisolado, crente nos fundamentos da tirania reinante. Digamos que vivia do sistema e com o sistema. Dava-se bem com Deus e com o Diabo, capava e assobiava ao mesmo tempo. Mas ninguém o tinha como um sacripanta.

Em plena década de 70, tendo já desaparecido praticamente a organização militarista que tomava conta dos jovens aos 6 anos de idade, vestindo a meninice com as fardas do pensamento único, vivia-se ainda, contudo, o terror da vida militar e dos cenários de guerra, o que levou muita gente a emigrar para escapar ao embarque.

Tudo isto causava revolta na mente de Gabiru, chocado com a tragédia do lugar do Souto, onde um primo do Mendes viera dentro de quatro tábuas para assustar a passarada com uma salva de continências e de estampidos arrepiantes. Baptizaram-no de Gabiru porque tinha as pernas à semelhança de uma ave pernalta, o que lhe dava uma certa vantagem sobre os colegas, pois muitos deles não gastavam sequer as medidas de um fato, porque não iam além do metro e vinte. Não tinha era mesmo aquela doença ou defeito que desse para escapar à guerra. E depois faltavam-lhe os tomates para fazer como um sobrinho do Rufino que decepou o dedo de premir o gatilho.
Pensava nestas coisas quando os cães deram sinal de gente.

Por entre os latidos, pressentiu a chegada do Mendes, que vinha capar os porquinhos da última ninhada da Porca Laurinda. Ainda era cedo para escochinar a ceba, guardada que estava para a próxima função. Além da capadeira, que embrulhava em tecido, o homem tinha fama de esconder debaixo da samarra as melhores peças de carne. Mas ninguém lhe condenava essa fraqueza, pois o gajo era muito dado e muito amigo de ajudar.

Uma vez terminado o trabalho, e enquanto passava os facalhões por água no bebedouro das vacas, o tipo chamou o pai do Gabiru e, depois de umas palavras, o Mendes, já com o guarda-chuva encabidado na samarra, chamou o moço e pediu bico calado:
- A coisa está resolvida. Bem, penso que num terá perigo. Assinas aqui este papel em como és meu empregado e que te pago por isso. Depois, logo se berá se conseguimos o amparo. Ainda assim, vais arremedar o mouco da Granja, entendes!

Com aquele seu ar de mosca-morta, Faustinho sossegou um pouco, pois apesar de vender nervos por todos os poros cutâneos ia benzido pelos preparos do Mendes e, por isso, tinha dia escritinho para receber a reserva territorial. Podia tremer muito no gatilho e na máquina de escrever, podia não ouvir o inimigo, tudo faria para arranjar maneira de não assentar praça.

Iria repetir a as cenas do Pinquilho, super ensaiado pelo Mendes para fazer ouvidos de mercador e para atrasar a fala como naturalmente fazia o Quinteiro, a quem a mãe deixara cair da janela. Por sorte, a criança despenhara-se por sobre uma ruma de estrume, com a cabeça a centímetros de uma forquilha. Um destino porco e fatal para as goelas do garoto, que nunca se livrou duma acentuada parafemia.

Os mancebos já não falavam de outra coisa que não fosse a ida à inspecção. Agora, já o podiam fazer de camioneta da carreira, mas antigamente a rapaziada ia a pé, durante muitos quilómetros, numa jornada que traduzia um dos principais rituais, senão mesmo o principal ritual de passagem à vida adulta. Quem não tivesse ido à inspecção, ainda não era HOMEM! E os homens queriam-se bem tesos e nada amolencrados.

Bem metido na pele de mouquinho lá surgiu em Braga no dia marcado para a inspeção, diante do sargento de serviço, um brutamontes fardado de verde, com óculos quadrados de haste larga e um bigode rufião que reforçava o cinismo da carranca e acentuava o ar inquisitorial na leitura dos atestados. Deste graduado se dizia que foi ele, ou a família, que espalharam em Braga a moda das tatuagens, uma prática que pintalgou os braços dos magalas durante a guerra d’África.
Depois de procurar em todos os bolsos cigarros imaginários, o sargento rosnou:
- Escuta lá, o finório, então bocesselência responde ao que lhe pregunto?... Não temos o dia todo!

Faustinho agitava os ombros, soltava uns grunhidos de puta apressando a ejaculância, colocava as mãos em concha atrás dos abanadores e...
Furioso e já com a paciência remoída, o Sargento resfolegava. Até que lá encontrou uma saída:
- Pronto, bá lá, faz-me uma coisa, lê-me aí este papel... E virado para um praça que tinha vindo trazer o café das 11, uma zurrapa, atirou desconfiado: Você já viu: - este cabrão surdo como uma porta, ó 74?
Bem, nesta parte fora fintado - pensou maquinalmente o mancebo, já com as mãos a suar de medo.

O certo é que leu avidamente o recado e apressou-se a descer a escadaria do antigo Convento do Pópulo, onde funcionava o DRM. Mas ainda não tinha vencido metade dos degraus e instintivamente teve de voltar a cabeça sem fazer ideia que nas suas costas estava o sargento ainda a segurar a asa da chávena de café que acabara de se desfazer em cacos.
Um estrondo ensurdecedor, um traque à pai do Mendes. Só quem já experimentou as vibrações e os espasmos do martelo pneumático pode aferir das ventosidades do velho.

Logo o inspector desfez a tramóia, com a maior das ironias:
- Então o meu amigo é mesmo surdo, não é?
O rapaz ficou amarelo como a cera, depois muito carminado, passando à cor do petróleo, olhos sanguíneos de gana, tentando disfarçar o melhor que podia. Estugou o passo com a rapidez de um pulgão e deu quatro voltas à estátua do Marechal Gomes da Costa antes de arranjar coragem para levar o Correio do Minho ao Gabinete do Sargento inspector.

Desta vez, percebeu que fora à lã e saíra tosquiado. No entanto, no dia seguinte, chegou a grande notícia pela boca ferrugenta do Neves.
- Tás safo, meu! Além de surdo, quero-te mudo até à cova, oubiste?
E foi assim que, no meio de tanta festejança, Gabiru provou o seu primeiro gole de jeropiga.

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