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Voz aos Escritores

2018-10-12 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

-Menina, não tem 23 escudos que me arranje?
A voz cavernosa combinava com a imagem do Adamastor, ali, de repente, à minha frente. Não consegui evitar o salto do corpo, sentada, dentro do carro estacionado em segunda fila, à espera que saísses do teu horário obrigatório e mais algum que pudesses dar de um estágio de fim de licenciatura.
- Não se assuste, menina. Não é, de todo, minha intenção assustá-la. Mas faltam-me 23 escudos para comprar umas tostas que vendem ali no supermercado e se mos pudesse facultar, ficar-lhe-ia tremendamente agradecido.
- Sim, claro que sim.

Vasculhei as moedas na carteira e rapei o pouco que havia a tapar o fundo. Entreguei-lhas e despediu-se agradecido. Ainda não tinha tido tempo de pensar muito bem a figura e já esta estava de regresso à minha janela ambulante.
- Menina, não querendo abusar da sua generosidade, abordo-a novamente no sentido de me poder presentear com um cigarro.
Não tinha qualquer intenção de dizer que não tinha, até por que estava a fumar. Abri novamente a carteira e peguei no maço que tinha 2 ou 3 cigarros e dei-lho.
- Muito obrigada pela sua generosidade.

E fiquei ali, com o meu pensativo cigarro, a perguntar-me como era possível uma voz bater tão depressa nas entranhas e ficar por lá a ecoar.
Nos dias seguintes os encontros sucederam-se sempre por ali, por Santa Tecla. De tal forma que vinha mais cedo e deixei de me importar com as tuas demoras. Estacionava o carro e acabávamos sempre no café que faz canto, na minha tentativa frustrada de lhe dar algo para comer. Comia eu. Ele bebia.
- Menina, se quiser fazer um velho feliz…
Tinha o mar nos olhos. Olhos que mareavam voltas e revoltas, tempestades medonhas à procura de um sopro tropical que lhe acalmasse as torturas, uma maré rasa no final de uma tarde de Verão, cheios de instantes inconstantes. O mar que engole muitas vidas. Ele andava apenas a naufragar na sua.

E de repente Herberto, Al Berto, Pessoa, ali, naquela mesa, a tomarem ares de vida connosco. Ou Dylan, ou outras coisas ainda que a falta de memória não me deixa nomear, pela gaita-de-beiços que o acompanhava. Mas lembro-me ainda da conversa sobre o Paulo de Carvalho.
- Senhor Dinis, diga-me uma coisa, o senhor tem tanta cultura, uma bagagem invejável, podia estar a fazer tanta coisa gira, com malta nova que anda sempre por aqui, à sua volta… nunca pensou nisso?

O Adamastor preso à sua rocha no instante da frase. Uma pedra. Duas, uma em cada olho. A face fechada, zangada. Pensei que se ia embora e nunca mais me falaria. Depois voltou-se para os meus olhos, muito próximo, muito dentro.
- Sabe, menina, desisti de passar por cima dos outros para fazer seja o que for.
Nunca mais toquei no assunto. Nem falei mais sobre guerras, coloniais, internas ou externas. Acho que naquele tempo me fazia mais falta ele a mim do que eu a ele. E como sempre, no fundo.

O teu estágio acabou e os encontros foram rareando melodicamente ao ritmo da rotina noutras obrigações. Neste mês, em 2000, a minha madrinha guardou-me o jornal com a sua fotografia. Ao entrar em casa, entregou-mo.
- Pega. Vais ficar triste.
Daqui a dois dias faz 18 anos que morreu o senhor Dinis. Um número redondo, maior de idade. Faz a mesma conta que descobri o poeta Sebastião Alba.

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