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Ideias
2018-10-22 às 06h00
Há semanas, na livraria Centésima Página, em Braga, proferi uma conferência, a convite do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. E há dias, aprofundei e a desenvolvi a mesma ideia na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra.
Em cima da mesa esteve a acelerada substituição no Ocidente do regime literário, que assenta na palavra e no pensamento, pelo regime tecnológico, que se apoia no número e na medida. Esta substituição tem-se acentuado, sobretudo, desde que o computador e a Internet tornaram possível que a digitalização da cultura, das artes e do conhecimento abrisse caminho à Nova América de um novo arquivo cultural.
Assinalei, pois, a crise das principais instituições da palavra e do pensamento, de que o Ocidente tanto se orgulha, por constituírem os pilares do seu modo de vida.
1. Assinalei a crise do sistema democrático, um sistema que se foi apurando desde os gregos, até se estabelecer depois da II Guerra Mundial como a ideia de uma comunidade universal de homens livres, comprometida com a harmonia das gerações, que se sucedem umas às outras, e atenta à condição dos mais frágeis: os mais jovens, os mais velhos, os que não têm saúde, os refugiados, os emigrantes, os desempregados e os desqualificados.
2. Assinalei a crise dos três poderes da soberania, o Executivo, o Legislativo e o Judicial, que garantem a saúde do sistema democrático. Foi por essa razão que Montesquieu, em 1750, na Defesa do Espírito das Leis, os considerou igualmente soberanos, por prometerem coisas insdispensáveis à vida democrática e serem todos dotados de autoria.
O poder autoral é o poder de enunciar mundos e, pelo simples facto de os enunciar, os chamar à existência. É assim com o Poder Executivo, que promete ser bom e fazer o bem. É também assim com o Poder Legislativo, que promete a igualdade dos cidadãos, enquadrando pela Lei as suas práticas. E é assim, ainda, com o Poder Judicial, que promete a justiça e a verdade aos cidadãos.
Os três poderes soberanos da democracia falam-nos, cada um deles, de uma promessa, sendo que na promessa há algo imortal, porque nela alguma coisa vive para sempre, como figurou o escritor argentino, Jorge Luís Borges, no poema Unending Gift (dom imperdível).
3. Assinalei, também, a crise dos média, os quais prometem aos cidadãos a emancipação da sociedade civil, diante dos poderes constituídos, por exemplo, o Estado e o mercado. Os média exercem uma função de mediação entre a sociedade civil e os agentes do Estado, e também com os representantes das instituições e das organizações sociais. E exercem, ainda, uma função de vigilância sobre todos os poderes constituídos. É exercendo este papel de mediação e de vigilância que os média trabalham na constituição do espaço público e na estruturação da opinião pública. Os média prometem a emancipação dos cidadãos, armando-os para o exercício da cidadania, de homens e mulheres, livres e esclarecidos.
4. Assinalei, finalmente, a crise das Universidades. Nasceram no Ocidente, do século XI ao século XIII, para servir a palavra e o pensamento, o que queria dizer, o conhecimento. Mas como há meses assinalou António Coutinho, médico imunologista e atual diretor do Instituto Gulbenkian de Ciência, à Folha de São Paulo, “A filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer”. Ou seja, na ideia de António Coutinho, o pensamento está fadado a desaparecer, não apenas da Universidade, mas da própria sociedade.
A força dinamizadora destes pilares da civilização ocidental (palavra, pensamento, sistema democrático, separação dos poderes de soberania, média e Universidades) repousa no princípio da analogia, tanto em cada um dos livros que fundaram o Ocidente, a Torá, a Bíblia e o Alcorão, que remetem para a unidade de Deus, como nas coisas no mito da Caverna de Platão, que remetem para a unidade da Ideia. E de acordo com o princípio da analogia, nada subsiste por si mesmo, dado que tudo remete para um outro, que dá unidade ao que está disperso, por ser múltiplo e dividido.
Mas o que existe de perturbador para este regime de civilização é o facto de a tecnologia, de natureza informática e eletrónica, ter introduzido a crise global do sistema. O computador e a Internet exprimem já essa nova ordem, a de uma civilização numérica e cibernética, sendo esta a disciplina do controle, o qual pode estender-se até confins pela teoria geral dos sistemas de informação. De facto, a nova ordem produz tribos e multidão; não produz cidadania.
A nova ordem trouxe velocidade, acelerou a vida e mobilizou o humano para as urgências da presente, como nunca aconteceu em momento algum da história da humanidade.
E não pode dizer-se que a nova época não tenha fascínios deslumbrantes. Podemos falar, mesmo, de uma nova erótica interativa, uma erótica que se desenvolve na ligação dos homens com as máquinas, assim como podemos falar do sex-appeal dos objetos técnicos.
Com efeito, a técnica está a produzir uma civilização emocional. Na nova ordem numérica, técnica e emoção constituem uma amálgama.
Mas o perigo é avassalador. Porque a ideia de comunidade está a ser substituída pela ideia de tribo, que apenas segue uma “razão sensível”, sem outro compromisso que não seja a emoção que se partilha.
Hoje, a ideia de nação, por exemplo, está a ser convertida, de um modo aflitivo, por todo o lado, numa tribo e em interesses de tribo.
E a mesma coisa acontece com a cidadania e os média, em que o compromisso com as ideias é convertido em espetáculo e substituído por redes sociotécnicas, que se comprazem em mero deleite emocional.
Quem governa deseja-o fazer sem nenhuma mediação jornalística, mas diretamente com os elementos da sua tribo (nacional e internacional), através de selfies, posts e tweets. E vai-se generalizando também a tendência para os grandes poderes constituídos na sociedade criarem os seus próprios meios de comunicação social, que lhes permitam dispensar as conferências de imprensa e assim evitar o confronto com os média.
Uma palavra final, com a qual finalizo o meu ponto de vista. Tomo do filósofo e do poeta alemão, Friedrich Hölderlin, o verso “lá onde está o perigo também cresce o que salva”. É exatamente nesse ponto que deposito a minha esperança. Espero que o Ocidente saiba encontrar, nas condições tecnológicas do presente, as soluções para os perigos que tem que enfrentar e para os riscos que está a correr.
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